Juízes sem rosto: um Estado com medo?


Marcelo Arigony — Advogado criminalista. Professor. Doutor.

Está sendo implantado em Santa Catarina um modelo inédito no país: juízes com identidades preservadas, audiências por videoconferência e uso de inteligência artificial para ocultar rostos, vozes e até votos vencidos. A proposta, vinculada à 1ª Vara Estadual de Combate às Organizações Criminosas, mira facções com atuação interestadual e promete proteger magistrados e dar agilidade aos processos mais sensíveis da Justiça penal.

A proposta toca em um ponto delicado do sistema penal brasileiro: como garantir segurança institucional sem comprometer os pilares constitucionais do processo justo? A resposta não é simples, mas o debate é urgente.

De um lado, é preciso reconhecer o avanço e a ousadia das facções criminosas nos últimos anos. O ambiente de atuação dos operadores do Direito tornou-se mais sensível, exigindo novas estratégias institucionais de proteção. Embora não se possa afirmar que haja uma epidemia de atentados, o risco de ameaças e coações contra magistrados, promotores, policiais e advogados é real e precisa ser enfrentado com seriedade.

Nesse contexto, o anonimato pode parecer uma resposta necessária. A previsão legal existe — a Lei 12.694/2012 e o Pacote Anticrime (Lei 13.964/2019) autorizam a formação de colegiados em casos de grave risco pessoal aos magistrados. O que muda, agora, é a extensão tecnológica desse sigilo: em vez de preservar o nome, preserva-se o rosto, a voz e até a opinião divergente.

É aqui que mora a tensão jurídica. O princípio do juiz natural (art. 5º, LIII, CF) e o direito à ampla defesa (art. 5º, LV) pressupõem a identificação clara de quem julga. Saber quem decide, ouvir todos os argumentos, ter acesso ao voto vencido — tudo isso faz parte do controle democrático da jurisdição. O sigilo absoluto pode romper esse equilíbrio.

O modelo de “juiz sem rosto” já foi experimentado em outros países e, em alguns casos, duramente criticado. No Peru, por exemplo, o uso de juízes mascarados em tribunais militares levou à condenação do Estado na Corte Interamericana de Direitos Humanos. Não se trata de traçar paralelos automáticos, mas de aprender com experiências anteriores.

A Justiça não pode ser cega para o perigo — nem lenta diante de ameaças que se atualizam em velocidade digital. Proteger quem julga é proteger o próprio exercício da função jurisdicional. Desde que respeitados os limites constitucionais, novos instrumentos de segurança podem — e devem — ser considerados.

O avanço das facções desafia não só as forças de segurança, mas a própria estrutura do sistema de Justiça. Diante desse cenário, proteger quem julga é medida de responsabilidade institucional. Não se trata de esconder a Justiça, mas de preservá-la. O que está sendo experimentado em Santa Catarina é uma tentativa concreta de conciliar tecnologia, segurança e legalidade diante de um novo tipo de ameaça. Cabe ao Direito acompanhar com vigilância, mas também com respeito às soluções que tentam responder a um tempo que mudou.

A proposta também tem sido acompanhada de perto por instituições como o Conselho Nacional de Justiça, que reforça a importância da publicidade e do controle externo como pilares do sistema. Juízes e membros do Ministério Público reconhecem o valor da proteção digital, desde que cercada de critérios objetivos. Advogados e juristas, por sua vez, pedem garantias claras quanto ao exercício da ampla defesa e ao acesso integral aos autos e decisões. O consenso que se forma é de que a tecnologia pode ser aliada da Justiça — mas não substituta dos seus fundamentos.

Mais do que proteger quem julga, é hora de enfrentar com seriedade o motor que alimenta o crime organizado. Precisamos investir em duas frentes: antes do crime, nas áreas de vulnerabilidade social, com políticas reais de inclusão e formação cidadã; e depois do crime, no sistema prisional, para que o cumprimento da pena seja digno e efetivo. O sistema prisional, do jeito que está, funciona como mola propulsora da criminalidade — um espaço que muitas vezes serve como escola e quartel-general das facções. Não se trata apenas de punir, mas de evitar que o sistema continue a reproduzir o problema. Justiça forte também se faz com prevenção, reintegração e presença do Estado onde antes só havia abandono.

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