Proporcionalidade penal em debate: quando a pena por ferir um animal supera a agressão a uma pessoa

Autor: Marcelo Mendes Arigony – Advogado – Professor – Doutor -Diretor da Ulbra Santa Maria

No Brasil atual, a pena por maus-tratos a um cachorro pode ser mais severa do que a punição aplicada a quem agride um idoso, uma criança ou mesmo um adulto.

O Código Penal prevê, para maus-tratos a pessoas em geral, pena de detenção de 1 mês a 1 ano. Quando a vítima é uma criança, a punição pode chegar a 3 anos; no caso de idosos, até 4 anos de reclusão, conforme o Estatuto do Idoso.

Desde 2020, no entanto, a Lei nº 14.064, conhecida como Lei Sansão, passou a prever pena de 2 a 5 anos de reclusão para maus-tratos contra cães e gatos — um avanço importante na proteção dos animais, com base no seu reconhecimento como seres sencientes. A lei foi batizada em homenagem ao cachorro Sansão, vítima de um caso brutal de violência, que comoveu o país.

Mais recentemente, em 16 de junho de 2025, foi sancionada a Lei nº 15.150, que alterou a Lei de Crimes Ambientais (Lei 9.605/98) para incluir o § 1º‑B no artigo 32. A nova norma tipifica de forma expressa como crime a realização de tatuagens e piercings estéticos em cães e gatos, mantendo a mesma pena já prevista: de 2 a 5 anos de reclusão, além de multa e perda da guarda do animal.

A análise jurídica, contudo, revela um ponto sensível: a proporcionalidade penal entre o bem jurídico protegido e a gravidade da sanção. A integridade física e psíquica de pessoas, especialmente em situação de vulnerabilidade, como crianças e idosos, parece ter recebido, na prática, uma proteção penal inferior à conferida aos animais de estimação.

Ainda que a discussão envolva comparações delicadas, é importante considerar ambos os aspectos. A proteção penal dos animais atende a uma demanda social legítima e crescente. Cães e gatos são seres sencientes, sujeitos a práticas cruéis e, muitas vezes, incapazes de qualquer forma de defesa. O agravamento das penas, nesses casos, pode ser visto como uma resposta compatível com a gravidade da conduta e com a sensibilidade coletiva. Mas é justamente por envolver diferentes bens jurídicos que o tema exige precisão técnica. Comparar literalmente tipos penais com naturezas distintas enfraquece o debate e pode comprometer a coerência do sistema penal, cuja estrutura deve se manter racional, proporcional e juridicamente equilibrada.

Trata-se de um fenômeno que não coloca em xeque a legitimidade da proteção aos animais — que é constitucional, civilizatória e necessária —, mas sim a coerência interna do sistema penal, que deve se organizar com base em critérios racionais, graduando as penas conforme a importância do bem jurídico violado.

Esse tipo de descompasso pode, no futuro, ser objeto de análise pelos tribunais superiores, como o STJ ou o STF, especialmente sob a lente do princípio da proporcionalidade, consagrado no ordenamento jurídico brasileiro. É uma discussão técnica relevante, que envolve não apenas o direito penal, mas também a política criminal, os valores sociais em mutação e os limites da atuação legislativa em temas de alta sensibilidade moral.

Os efeitos da nova norma logo serão sentidos na prática: prisão em flagrante, denúncias formais, ações penais e risco de condenações com regime fechado.

Discutir esse cenário não significa hierarquizar sofrimento, mas sim questionar a lógica penal em vigor, seus critérios de proporcionalidade e sua capacidade de manter equilíbrio entre proteção jurídica e resposta estatal. É nessa reflexão que o Direito se fortalece — quando não se curva à emoção, mas também não ignora a razão.

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