STJ decide em junho de 2025: reconhecimento fora da lei é nulo. E agora?

Por Marcelo Arigony – Advogado criminalista, professor universitário e Delegado de Polícia por 25 anos

O dia 11 de junho de 2025 pode parecer apenas mais uma data no calendário jurídico, mas não é. O Superior Tribunal de Justiça decidiu, de forma unânime, que o reconhecimento pessoal feito sem obedecer ao que está previsto no artigo 226 do Código de Processo Penal é nulo. Não irregular. Não anulável. Nulo.

E isso muda tudo — ou deveria mudar.

Até aqui, muitos reconhecimentos eram usados como base para manter pessoas presas, embasar denúncias e até sustentar condenações criminais. Mesmo quando esses reconhecimentos tinham sido feitos por uma foto informal, por celular, em plantões atribulados, com pressa e emoção. Agora, com o julgamento do Tema Repetitivo 1.258, esse tipo de prática precisa ser superado.

Porque quando o Estado olha para alguém e diz: “é culpado”, essa afirmação não pode vir da lembrança vaga de uma vítima em estado de choque. Ela precisa vir de um processo — e esse processo precisa respeitar a lei.

O artigo 226 do CPP nunca foi enfeite. Ele exige que o suspeito seja colocado ao lado de outras pessoas com aparência semelhante. Determina que a vítima descreva o autor antes. E exige que tudo seja documentado, com grau de certeza e condições controladas. São passos simples, mas essenciais para preservar a justiça.

A decisão do STJ, agora vinculante, reafirma que não é possível flexibilizar esses ritos em nome da conveniência. O reconhecimento pessoal é uma prova delicada. Irrepetível. E como toda prova irrepetível, ela precisa ser feita com cuidado dobrado. Não há espaço para improviso. O erro aqui custa caro demais.

O próprio relator do caso, ministro Reynaldo Soares da Fonseca, deixou isso muito claro. E o ministro Rogerio Schietti Cruz, em seu voto, foi ainda mais direto: “É uma forma de mitigar o risco de se produzir uma das maiores e mais dramáticas injustiças possíveis: a condenação de um inocente.”

A ciência ajuda a compreender o porquê. A memória humana é falível. Ela não registra como uma câmera. Ela reconstrói. É influenciada pelo ambiente, pelo estresse, pelo tempo e — infelizmente — por preconceitos inconscientes. A psicologia do testemunho e a neurociência vêm alertando isso há décadas, e agora o Judiciário começa a responder à altura.

O Conselho Nacional de Justiça também já havia se adiantado, ao aprovar a Resolução 484 em 2022 e, depois, o Manual de 2024. Ali estão descritas todas as boas práticas que devem acompanhar o reconhecimento pessoal: entrevista prévia, orientação neutra, alinhamento fenotípico, gravação audiovisual e registro do grau de certeza. Um protocolo que não burocratiza — ao contrário, protege. Evita o erro, garante a legitimidade.

E agora, o STJ transforma isso em exigência. Não é mais recomendação. É obrigação. A ausência desses cuidados invalida o reconhecimento. E mais: contamina qualquer outro ato posterior. A lógica é simples e implacável — se a primeira lembrança foi induzida, as próximas estarão comprometidas. Não há memória neutra depois da contaminação.

A consequência processual é direta. O reconhecimento feito fora da lei não pode ser base para denúncia, nem sustentar pedido de prisão preventiva. Também não pode, sozinho, justificar uma condenação. Pode até ser considerado, desde que acompanhado de outras provas robustas e independentes. Mas isoladamente, não se sustenta mais.

Isso impacta todos os operadores do sistema penal. Delegados, promotores, defensores, magistrados. E, claro, a advocacia criminal. Cabe a nós, que lidamos com o processo penal todos os dias, exigir o cumprimento técnico e ético dessas exigências. Impugnar o que precisa ser impugnado. Propor o que precisa ser corrigido. E, acima de tudo, proteger quem ainda não teve voz.

Essa decisão do STJ não nasce para proteger culpados. Ela existe para garantir que ninguém seja condenado sem que o Estado tenha feito sua parte. E essa parte começa no respeito ao rito, ao contraditório e à produção da prova da forma certa.

Porque o processo penal, quando falha, fere duplamente: a vítima e o inocente.

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